sábado, 26 de maio de 2012

Morte

MORTE

...E por fim chega a morte.
A morte é a maior injustiça na vida humana. É a maior injustiça porque é
imprevisível e é irreversível. É o fim total e absoluto. É o silêncio, a inexistência,
o nada.
A morte é a maior certeza da vida. É a certeza que causa mais angústia. É
a principal causa da nossa inquietude. É o nosso maior mistério. É aquela contra
a qual lutamos toda a vida sabendo de antemão que um dia seremos vencidos
por ela. É a nossa maior derrota.
A morte é uma coisa simples e facilmente compreensível — mas dificilmente
aceitável.
Não haveria vida se não houvesse morte — embora dificilmente se compreenda
o sentido da vida sabendo que há a morte. Mas o facto é que a natureza
é assim e nós nascemos dela, e independentemente da nossa vontade e conceitos
de justiça, é a ela que temos que obedecer, simplesmente porque não
temos alternativa.
A morte é o fim. E só tem fim o que tem início. Só o que existe tem fim
— morre. A morte é o fim do que existiu com vida por ter como inicio o nascimento.
Tudo o que nasce tem vida, e tudo o que tem vida morre. Da mesma
forma como tudo o que não nasce não tem vida e não morre, ainda que exista.
O que existe sem vida não morre, ainda que tenha fim. Considera-se que morre
o que existe com vida artificial, mas a morte só é aplicada correctamente ao
que existe com vida natural, porque só o que é natural nasce.
Toda a nossa vida tem como principal objectivo não morrer. Só depois de
salvaguardarmos a vida nos preocupamos que ela seja agradável e construtiva.
A luta pela sobrevivência é a principal causa dos movimentos de todos os
seres vivos, e dos humanos como tal, ainda que disso dependa a vida de outros
seres vivos. Para sobreviver é natural ter que matar.
É a maior certeza da vida porque tudo o que vive morre. E os seres
humanos, como todos os animais e plantas nas mais diversas espécies e composições
orgânicas, todos morrerão mais cedo ou mais tarde, conforme o tempo
médio de vida de cada espécie por atingir limite de idade, ou conforme a
sobrevivência durante a vida por satisfazer ou não as necessidades básicas
vitais, e sofrer ou não acidentes.
A enorme angústia causada pela morte deve-se ao facto da morte poder
acontecer a qualquer momento, sem qualquer aviso prévio, e por razões das
mais diversificadas. Pode-se morrer por inumeráveis razões porque a vida é
demasiado frágil. O ser humano é composto por um conjunto de órgãos e funções
vitais que funcionam interligadas, e basta quebrar uma delas para acontecer a morte,
que pode ser instantânea. Essa característica fragiliza a vida provocando
nuns as mais diversas fobias causadas pelo próprio medo da morte
[tanatafobia], e provocando noutros a desmotivação, apatia, indolência e incúria,
porque, se a vida pode acabar a qualquer momento não encontram motivação
para investirem nela.
A injustiça de que a morte se reveste sente-se ao saber que todos morremos
— condenáveis e virtuosos; ao saber que não sabemos como — não
podendo evitar sofrimento; ao saber que não sabemos quando — para projectarmos
o futuro seleccionando o que podemos e queremos fazer naquele tempo,
e para nos despedirmos dignamente da vida; ao saber que é irreversível e
não podemos voltar para corrigir erros, e tudo o que éramos deixamos de ser
para sempre, e tudo o que tínhamos e gostávamos fica para sempre, e os outros
que nos eram próximos ficam sem nós para sempre e ficam tristes porque partimos
sem termos avisado... É demasiado injusto.
A morte é também o maior mistério para os humanos, porque o facto dos
que viveram connosco, dos que foram a razão natural e sentimental da nossa
existência, o facto deles partirem para sempre, e de simplesmente nos abandonarem,
é triste demais para ser verdade. Para atenuar essa tristeza houve a
necessidade de dar um novo sentido à morte, e desde os tempos mais imemoriais
a morte existe envolvida nos mais diversos significados, com rituais místicos,
religiosos e tradicionais, cada um com a sua mitologia, e quase todos
com componentes espirituais: para uns, a “alma” ou qualquer analogia, que se
gerou com o corpo irá para um estado permanente de sofrimento ou de plenitude,
conforme o comportamento em vida; para outros, a alma abandona o
corpo e nasce noutro, andando de corpo em corpo até atingir a plenitude; para
outros, a alma que foi atribuída a um corpo regressa ao seu estado sublime inicial;
para outros a alma que se separa do corpo regressará um dia a ele; para
outros será o corpo a iniciar nova vida noutra dimensão; para outros, será a
obra realizada em vida que imortalizará a sua existência. Estas e muitas outras
formas de encarar a morte são atenuantes, mas nunca anulam o sofrimento,
tanto para quem vai morrer como para quem vê os outros morrerem — salvo
naturalmente as excepções de culto à morte — porque a morte, por muita fé
que se tenha numa continuidade da vida é sempre uma passagem para o desconhecido.
Para o desconhecido quando se tem fé e se acredita em mais alguma
coisa, porque quando não se tem e se racionaliza, a morte continua a ser
uma passagem, mas é uma passagem para a inexistência, para o nada...
E essa é que é a verdade. Todos os misticismos e sentidos religiosos atribuídos
à morte foram atribuídos por vivos enquanto vivos. Ninguém depois de
morrer contactou os vivos para dizer o que era a morte. Todos os relatos de
contactos com mortos, com entidades de outros mundos, com antepassados,
com entidades divinas, etc; são todos irreais, são todos imaginados, sonhados,
fantasiados ou iludidos.
Ninguém consegue racionalmente qualquer tipo de contacto para além da
própria natureza. O sobrenatural é pura invenção humana. Todos os contactos
relatados ou são lendas de mitos antigos, que ninguém vivo presenciou —
podem ser inventados — ou se são relatados pelos próprios videntes, acontecem
sempre num estado de consciência que não é normal, racional ou de vigilância
— acontecem em sonhos, em estados de doença, com o sistema nervoso
excessivamente deprimido ou excitado, com alucinogéneos, em transe, etc; —
e quando são presenciados por muitas pessoas, ou são acontecimentos naturais
ainda não científica e racionalmente explicados, ou são alucinações, colectivas
e individuais — porque todos vêm uma coisa mas cada um vê à sua maneira
— ou são ilusões produzidas por alguém ou pela natureza.
Todos estes relatos são considerados do além porque nós, consciente e
racionalmente, não os conseguimos explicar. São então usados para fortalecer
as crenças de que existe algo mais para além de nós e que pela morte passamos
para esse conhecimento. Mas o facto é que mesmo assim ninguém — psicologicamente
saudável — quer morrer. Quem deseja morrer tem graves problemas
na vida e simplesmente quer acabar com tudo — e isto realmente a
morte proporciona, o fim de tudo, do sofrimento e dos prazeres.
A morte é o fim total e completo. Não existe mais nada para além dela.
Morrer é deixar de viver a única vida que temos, porque só se vive uma vez.
Quando morremos acabamos para sempre. Deixamos de existir e tudo o que
éramos tudo deixamos de ser, de uma vez por todas e para sempre.
Os relatos do além são relatos do aquém. São relatos do nosso inconsciente.
Tudo o que nós criamos para o além e para a morte são criações à nossa
imagem e semelhança, e são os nossos desejos. Era assim que nós gostaríamos
que fosse para a vida ter mais sentido. E gostávamos tanto que até conseguimos
provas. Mas são provas falsas. A ciência começa a dar os primeiros
passos na descoberta do nosso inconsciente, do nosso cérebro e da nossa mente.
É lá que está tudo. É lá que tudo, deste e do outro mundo, se produz. E
produz-se sem limites. O homem é um ser racional e consciente. Só raciocinando
com consciência evolui, no entanto, tem também um enorme inconsciente,
que deve compreender já que não consegue dominar. E não consegue
dominar porque antes de ser racional é animal, produto da natureza como
todos os outros animais, e dela nasceu, dependente dela vive, e a ela regressará
quando morrer — muito naturalmente.
Para um homem nascer tem que haver vida anterior. A vida é um fio
natural transmissível através da concepção, e quando uma pessoa morre, a
vida fica através dos descendentes. No momento da concepção, uma nova e
única célula é criada a partir de duas metades de duas células (uma do pai e
outra da mãe). Essas duas células são prévia e aleatoriamente divididas a
meio. Cada novo ser, herda metade de tudo o que a mãe era e metade de tudo
o que o pai era, e com essas duas metades forma-se a si próprio no interior do
corpo da mãe, pois a nova célula concebida vai-se multiplicando imparavelmente
dando origem ao novo ser.
Quando nasce, o bebé é apenas um animal protegido pelos mais velhos.
Durante o crescimento as células reproduzem-se em grande número dando
origem a novos tecidos, cada vez maiores, mais resistentes e mais complexos.
As células de tecidos anteriores morrem para dar origem às novas e mais
adaptadas. Cada grupo de células tem características específicas para formar
os diferentes órgãos e funções. As células cerebrais são determinantes na formação
da mentalidade e personalidade durante o crescimento. É nestas que
assenta a memória, a mente e todas as características de humanos, incluindo a
espiritualidade. Todas as criações artificiais — linguagem, cultura, religião...
— são originadas nestas células e por elas são mantidas. Da mesma forma,
todas as atribuições à morte a elas se devem. Cada célula vive de algumas
horas a alguns anos, conforme as características do tipo a que pertencem, entre
as várias dezenas de tipos existentes. Quando o corpo atinge a idade adulta, a
reprodução de células diminui porque visa apenas o mantimento do corpo vivo
e saudável. O envelhecimento inicia-se quando o nascimento de novas células
é inferior à morte de outras, e começam a morrer células que não são substituídas.
Os tecidos começam-se a atrofiar e a sua funcionalidade diminui.
Começa-se a morrer devagar. O número de células vivas vai diminuindo, mas
mantém-se suficiente para que o corpo esteja vivo durante muitos anos. Até
que a sua reprodução é fraca ou nula e cada vez morrem mais. E acabam por
não serem suficientes para manterem activo o órgão, tecido, fluido ou função
de que são constituintes, e se esse elemento for vital, todos os outros param,
ainda que as suas células estejam funcionais. E morre-se.
A morte natural, biológica, não é um momento exacto. Tal como a seguir
ao nascimento existe crescimento, também antes da morte existe decrescimento.
O momento que é considerado como separação entre a vida e a morte é
discutível, mas só por razões sociais, legais ou filosóficas — não biológicas.
No passado recente considerava-se que uma pessoa morria quando o
coração parava, parando também a respiração. Mas as novas tecnologias
médicas conseguem fazer respiração e circulação sanguínea artificial. E considera-
se que um corpo passa de vivo a cadáver após a morte do cérebro. Quando
uma pessoa está em vida vegetativa, ligada a uma máquina, é porque tem
falta de células em alguma parte, que não lhe permitem viver, mas a máquina
substitui essas células. E quando sai viva da máquina após a recuperação dessas
células e diz que ouvia tudo, é porque as células que o permitiam não morreram.
As narrativas que muitas pessoas contam por estarem quase mortas e
que consideram do além, apenas são do seu inconsciente.
As máquinas levantam questões morais quanto à morte, mas após a paragem
cardiovascular ou após a paragem cerebral, o certo é que, quando se considera
que uma pessoa está morta, ela não está totalmente morta, ainda que
não possa mais regressar à vida.
Num cadáver as unhas e os pelos continuam a crescer — ainda existe
vida e existirá durante alguns dias, mais ou menos, conforme se morrer. Se a
morte for por velhice, as restantes células morrerão mais rapidamente. Se for
por doença, dependerá da doença. Se for por acidente, e com um corpo saudável,
demorará mais tempo, principalmente se for na juventude, porque as células
se reproduzem mais, podendo até reproduzir-se após a morte clínica ou
cerebral. Por essa razão se fazem transplantes de órgãos, que continuam vivos,
com a maior parte das células vivas, apesar de separados do corpo.
A morte total e real só acontece alguns dias mais tarde. Da mesma forma
que antes de nascermos já temos vida — intra-uterina — também depois de
morrermos ainda temos vida — celular.
O corpo nasce naturalmente pelos progenitores — pela semente que os
progenitores adultos concebem — transmite a vida exactamente pela concepção,
e volta à natureza pela morte. As células uma vez mortas são expelidas do
corpo quando este tem vida, e quando o corpo morre, as células, que acabam
todas por morrer, são consumidas pela natureza, ainda vivas, servindo de alimento,
ou mortas, como matéria orgânica — porque o corpo morto é biodegradável.
Mas o grande enigma da morte no homem não é propriamente o seguimento
do corpo, mas o seguimento do espírito. O espírito humano, tudo o que
o homem tem de psicológico, só existe porque existe o corpo. E existe alojado
exactamente nas células cerebrais do corpo, que são as células mais desenvolvidas
da natureza. O conjunto de células que existe no cérebro é o mais complexo
que há e é nele que está o espírito humano.
Quando uma criança nasce não tem mentalidade nem personalidade. As
células cerebrais dela começam por formar o inconsciente e depois o consciente.
As faculdades mentais de racionalidade só mais tarde surgirão. Com o
crescimento e maturidade do cérebro nascerá a segunda metade do ser humano
e ficará completa a dualidade corpo-espírito. Só tem espírito quem tem consciência.
Uma pessoa que não viva em consciência não reconhece a existência
do espiritual, porque se não pensa não sabe que existe. Assim, é a consciência
que cria o espírito, como cria muitas outras realidades humanas. E é com a
morte das células cerebrais, em conjunto com a morte de todas as outras células,
porque todo o corpo é só uma unidade, que a consciência deixa de existir.
Toda a existência espiritual é criada pelo cérebro no seu estado de consciência,
só possível nos humanos devido ao seu desenvolvimento. Os animais não
têm espírito porque o cérebro deles não lhes permite terem consciência, e sem
consciência não há espírito. Quando uma pessoa dorme, desmaia ou é anestesiada
totalmente, fica inconsciente, e enquanto está inconsciente não fala, não
raciocina, não sente, não respeita, não tem sensibilidade e bom senso, não se
alegra e não chora, não tem vaidade nem orgulho, não tem fé nem piedade,
não tem dignidade e não sente amor nem ódio, nem paixão e nem medo, numa
palavra, não vive nada do que é humano. E quando sonha, delira, está sonâmbula
ou qualquer coisa do género, apenas são manifestações do seu inconsciente,
pois ela não sabe que o faz e quando acordar de nada se recordará. Se
ninguém presenciar ou se, entretanto morrer, nunca saberá o que disse ou fez.
Quando as células do cérebro começam a morrer, começa também a morrer
a memória, a consciência, o espírito e a alma. Cada célula cerebral que
morre é um bocadinho da nossa existência espiritual que morre. Se morrermos
por velhice, podemos já em vida ter grandes deficiências cerebrais — falhas
de memória, distúrbios de personalidade, etc. — e poderemos ficar inconscientes
— em coma — durante muito tempo. Se morremos por doença, podemos
ficar inconscientes antes ou no momento da morte. Se morremos, subitamente,
por acidente, poderemos ainda ter acesso à consciência após [durante]
a morte. Tudo depende do tempo que passar desde que morram as primeiras
células cerebrais até que morram as últimas. Pode-se morrer lentamente
durante muitos anos, ou em alguns segundos, ao ser cortada a irrigação sanguínea
ao cérebro. Lenta ou súbita, a morte tem de passar pelas seguintes
fases: vida-consciência-semiconsciência-inconsciência-morte. Se a morte
acontecer lentamente, perdemos lentamente a consciência, e com ela perdemos
lentamente o espírito, o psicológico e a “alma”, sem darmos por isso. Se a
morte for súbita parece sentirmos a consciência a perder-se, a separar-se do
corpo, encontrando-nos num estado semiconsciente em que parece sentirmos
perder o corpo. E realmente perdemos. Vamo-nos distanciando do corpo até
que deixamos de o ver porque deixamos de existir. Morremos. Mas se os primeiros
socorros, ou a nossa força vital nos reanimarem antes de perdermos
totalmente a consciência, sentimos o regresso ao corpo e à vida, e com uma
verdadeira história do além para contar. História idêntica a muitas dos tóxicodependentes
e dos transcendentalistas.
A alma, o além, e tudo o que de espiritual temos são produções da nossa
consciência, fundamentadas também na inconsciência. E quando morremos
deixamos de ter consciência e inconsciência e tudo isso morre connosco.
O que fica da nossa vida são as nossas obras, as recordações que os
outros têm de nós, os nossos descendentes e as nossas coisas, mas que desaparecerão
ao fim de poucas gerações, se nós formos normais.
E a morte, como tudo na vida, também tem o lado bom: é o fim de todos
os sofrimentos e de todas as preocupações. Os nossos inimigos e opositores
também morrem, porque independentemente de todas as capacidades possíveis,
na morte todos somos iguais, todos igualmente morremos. É a justiça
fatal. E quando alguém morre, se é pobre e doente, liberta os outros de preocupações,
e se é rico e poderoso, liberta aos outros as heranças de milhões.
Porque na morte, como na vida, por serem da natureza, também nada se
perde, e também tudo se transforma. E a nossa consciência, de prova da nossa
existência, transforma-se em prova da nossa inexistência.

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